Um Pouco de História
Quando resolvi, em 1993, iniciar o trabalho com crianças autistas, a força que me movia era enorme. O desafio inicial era tirar meus filhos Giordano e Pablo do limbo social em que se encontravam. Era necessário devolver-lhes direitos de crianças que lhes tinham sido roubados, garantir-lhes um tratamento decente, uma escola, um caminho, uma esperança.
Logo descobri, o desafio era bem maior. Havia dezenas de crianças em situação idêntica. Famílias inteiras destroçadas, sem ter a quem recorrer em busca de diagnóstico, orientação, escola e tratamento para os filhos.
Minhas primeiras parceiras nessa caminhada foram oito mulheres, mães de crianças com autismo. Olhando para trás, era um desafio gigantesco. Montamos uma equipe multiprofissional para construir e socializar o conhecimento e conseguimos uma pequena parceria com o poder público. Estudamos, descobrimos caminhos, prospectamos tratamentos. Aos poucos os primeiros resultados positivos foram surgindo. A esperança ganhava fôlego em nossos corações à medida que as crianças paravam de se agredir e obtinham pequenas interações com outras pessoas, o que ia amenizando a dramática convivência de antes da existência da Casa da Esperança.
Quando o empreendimento completou dez anos, já havíamos construído uma bela sede própria, treinado professores da rede pública, inserido estudantes com autismo na rede regular de ensino. Tínhamos conseguido colocar jovens e adultos no mundo do trabalho e assistido o primeiro dos nossos jovens com autismo concluir um curso universitário.
Novos desafios, porém, nos cutucavam. De todos os lugares do Brasil e de muitos outros países chegavam novas crianças. Os tratamentos que haviam se mostrado eficazes não se aplicavam a todos os casos, o que exigiu de nós novas pesquisas. E do mundo, além dos muros da Casa da Esperança, chegava o clamor de crianças com autismo criadas em cárceres privados, relatos de tratamentos desumanos e desalentadoras notícias de recursos subitamente subtraídos pelo poder público, o que comprometia seriamente a continuidade do trabalho.
Nada disso abateu nosso ânimo, porque era preciso não apenas continuar, mas aprofundar e ampliar o trabalho, de modo que mais e mais pessoas com autismo e suas famílias tivessem uma vida melhor. Foi assim que conseguimos o credenciamento do SUS, o que nos deu suporte financeiro para garantir a manutenção e ampliação de nosso empreendimento. Foi assim que, tendo em vista o aprofundamento do conhecimento sobre autismo, despertamos o interesse e o respeito de grandes profissionais e organizações pela Casa da Esperança, como Ami Klin, então coordenador do Programa de Autismo da americana Universidade de Yale e promovemos congressos, jornadas, além de publicarmos livros e trabalhos científicos.
Hoje, apenas a sede de Fortaleza, atende 400 pessoas com autismo em regime intensivo, de quatro ou oito horas por dia e realiza mais de mil procedimentos ambulatoriais diariamente.
O nosso desafio inicial transformou-se, nesses dezoito anos, numa enorme rede de parceiros, ideias, cérebros, corações, vidas humanas colocando todo seu potencial a serviço das pessoas com autismo. Para nossa alegria, a genética e a neurociência social aplicada apontam perspectivas promissoras nessa luta.
Já não estamos sozinhos. Rompemos o autismo social. Participamos de um grande e vigoroso movimento mundial de luta pela saúde, educação e dignidade de pessoas autistas.
Este é o trabalho de minha vida, mas não é trabalho para uma vida apenas, mas para muitas vidas, bem mais importantes e nobres que a minha. Vidas que se consagram à tarefa de construir, a cada dia, caminhos transitáveis e seguros entre pessoas autistas e não autistas.
texto extraído do livro Autismo e Cérebro Social