O que é

Transtorno Autista

A História de Pedro

Pedro é o segundo filho de um jovem casal de médicos. Foi um bebê esperado. Os pais tinham uma menina de dois anos e planejavam uma família de três filhos. O casal vive em harmonia, namoravam desde o terceiro ano de faculdade. Os dois têm um emprego público e um consultório de pediatria. Estão no início de suas carreiras, mas vivem bem financeiramente. Ainda estão na faixa dos vinte anos e têm sonhos, muitos sonhos.

Paula e Alexandre já sabiam durante a gravidez que o próximo rebento seria um menino e curtiram muito a chegada do filho. Cada ultrassonografia era vivida e registrada com emoção. Estavam confiantes com a grandeza e possibilidade do amor dos dois: eram jovens e férteis. Corajosos e sadios. Tinham uma profissão que lhes permitia cuidar dos outros e manter uma família estável e feliz.

Pedro nasceu num domingo de sol, de parto cesáreo. Sua irmã mais velha também tinha nascido assim. Pedro chorou ao nascer. Pesou 3.650 gramas e mediu 50 centímetros. Apgar 9/9. Pegou bem o seio materno e recebeu alta hospitalar junto com a mãe.

Paula e Alexandre chegaram em casa com o caçula, cheios de planos.

A irmã de Pedro, Luciana, de início, teve muito ciúme do irmão. A mãe ficava tempo demais com o irmãozinho e quase não tinha tempo para ela. O pai desdobrou-se no cuidado com a filha. Luciana ficou mais chorona, birrenta, mas logo foi superando e já queria brincar com o irmão. Pedro ficava mais forte a cada dia. Só no peito, mamava e dormia, dormia e mamava. Era um bebê muito quietinho. Logo a mãe pôde dividir sua atenção com Luciana, Pedro não dava trabalho. Quase nunca chorava.

Aos três meses, Pedro já estava com 8 quilos e chamava a atenção pela beleza e saúde. Continuava crescendo e a mãe ficava deslumbrada com seu poder. Pedro nem sequer bebia água. Seu leite parecia ser tudo o que ele precisava para viver.

Aos seis meses, Pedro segurava um brinquedinho e quase nunca o soltava. A mãe e o pai faziam gracinhas, mas ele não dava muita bola. Era muito na dele, dizia a mãe. As pessoas faziam caras e bocas e Pedro não ligava, não sorria em troca. É muito sério, o meu menino, dizia o pai. Isso é bom, não nasceu para ser político. Mas Pedro ria, ria muito, quando lhe faziam cócegas ou mexiam físicamente com ele, outras vezes ria sozinho, sem nenhum motivo aparente. Nessa idade ele sentou sozinho, sem apoio. Aos nove meses, arrastava-se, não engatinhava, mas arrastava-se até os objetos que queria. A mãe brincava com ele, mas ele não a olhava nos olhos, não apontava, pegava diretamente o queria: é muito independente o meu rapaz, pensava.

Com um ano de idade, Pedro já estava dando alguns passos. Os pais, pediatras, estavam radiantes, tudo corria bem no desenvolvimento do menino.

Seis meses depois, Pedro era um belo e saudável garotinho. Andava para todos os lados, mexia em tudo, tudo virava um brinquedo em suas mãos. Pedro só não era muito simpático. Nisso era o contrário da irmã, sempre muito serelepe, desde pequena mandava beijos e dava tchau para todo mundo e não podia ver outra criança que já fazia amizade. Mas os pais sabiam, as meninas se desenvolvem socialmente antes dos meninos, inclusive falam mais rápido.

Aos 2 anos, Pedro ainda não falava nenhuma palavra e os pais começaram a ficar preocupados, mas a avó paterna, tranquilizou todo mundo, seu filho mais velho só falou aos 4 anos de idade.

O segundo aniversário de Pedro foi um pouco chato. A festa estava linda, todos os primos presentes. Havia palhaço, cama elástica, muita brincadeira. Pedro chorou a festa inteira e, antes dos parabéns, entrou no quarto e lá ficou tranquilo com seus brinquedos. A mãe deixou passar um tempo e aos poucos resolveu trazer algumas crianças e presentes para o quarto. Pedro teve uma verdadeira crise, chorou, esperneou, jogou os brinquedos pelo quarto e empurrou as crianças. Algumas mães que haviam entrado com Luciana pegaram seus meninos e, no jardim, cochichavam umas com as outras, que menino esquisito, mimado, mal-educado. Se soubesse, não teria trazido o filho, para ser empurrado daquele jeito.

Pedro, aos poucos, foi repetindo o comportamento nos shoppings, em outras festinhas. Saía sempre gritando com as mãos nos ouvidos. Os pais o levaram a um otorrino e foram pedidos muitos exames. Tudo normal. Aos 2 anos e meio, só demonstrava interesse por DVDs, principalmente da Xuxa. Ele pulava na frente da televisão. Pulava e balançava as mãozinhas. Parecia que ia voar. Com o tempo passou a balançar as mãos, mesmo sem músicas. Depois foi desenvolvendo verdadeira fixação pela Xuxa. O DVD tinha de ser reproduzido dez, quinze vezes, sempre visto com a mesma euphoria, e sempre que era retirado, parecia que o mundo ia acabar. Com 2 anos e oito meses, Pedro entrou na escola, os pais estavam muito ansiosos, quem sabe agora, no contato contínuo com outras crianças da mesma idade, o garoto não desenvolvesse plenamente a fala e pegasse gosto de brincar com outras crianças. No primeiro dia, tudo parecia que ia dar certo. Pedro adorou o parquinho e não deu o menor trabalho para ficar na escola.

Mas a lua de mel com a escola durou pouco. Com uma semana, as professoras não conseguiam tirar Pedro do parquinho. Ele gritava como se estivesse apanhando dentro da sala de aula. Corria para o parque e ficava lá sozinho. As professoras chamaram os pais e pediram uma avaliação do menino, elas queriam uma orientação. Naquele dia os pais ouviram pela primeira vez uma palavra, que jamais nunca esqueceriam na vida. Uma das professoras disse que achava o comportamento de Pedro muito parecido com o de outra criança, dois anos mais velho que ele, que já chegara na escola alfabetizado. A diferença é que o menino mais velho falava muito e sabia tudo de dinossauros. O menino mais velho era autista.

Os pais de Pedro fizeram uma busca na internet. Choraram muito ao descobrir que Pedro se encaixava muito bem nos critérios diagnósticos. Leram tudo o que encontraram e buscaram ajuda especializada. Logo foi feito o diagnóstico de Pedro. O fato de os pais serem médicos ajudou muito para que encontrassem profissionais competentes. Pedro estava prestes a fazer 3 anos e os pais sabiam que nessa idade o cérebro ainda está se desenvolvendo e muita coisa podia ser feita para que Pedro encontrasse o seu lugar no mundo. Eles estavam dispostos a tudo, para lhe oferecer o melhor que estivesse ao seu alcance.

Um Drama Cada Dia Mais Comum

A história acima ilustra um drama cada dia mais comum, a descoberta de que uma criança tem um transtorno do espectro do autismo.

Considerado raro até há pouco tempo, atualmente o autismo atinge uma em cada cem crianças que nascem. Nunca, como hoje, se falou tanto em autismo.

Este livro fala sobre autismo, sobre suas causas e formas comprovadamente eficazes de enfrentar o problema. Ele é destinado a pais e profissionais. Foi escrito com a cabeça e com o coração. Pois é assim que me relaciono com o autismo. Como mãe e como médica.

O que denominamos de autismo é, na realidade, apenas o protótipo de uma série de transtornos, com diferentes formas de apresentação e múltiplas causas, que apresentam entre si algumas características comuns:

Início muito precoce

Algumas dificuldades no desenvolvimento da criança com autismo se manifestam, ainda, no primeiro ano de vida;

Atraso e anormalidades no desenvolvimento da inteligência social;

Dificuldades de comunicação e linguagem;

Presença de estereotipias de comportamento, atividades e interesses;


Cada uma dessas características manifesta-se, nos indivíduos com autismo de forma variável.

Atraso e anormalidades na inteligência social


Alguns indivíduos com autismo são totalmente apáticos, isolados, parecendo quase impermeáveis a qualquer contato social, enquanto outros são desinibidos socialmente, podendo mesmo se relacionar com um grande número de pessoas, mas de forma indiscriminada, impessoal, performática, sem levar em conta os interesses daqueles com quem se relacionam.

As dificuldades de comunicação e linguagem podem se manifestar através de um mutismo total e permanente, passando por todas as nuanças em termos de quantidade e qualidade de linguagem expressiva e receptiva, verbal e não verbal, até chegar a indivíduos logorreicos, que "falam pelos cotovelos", mas não adequam o discurso às necessidades do interlocutor ou do ambiente em que se encontram.

As estereotipias caracterizadoras do autismo podem ser motoras, tais como flappings, balanceios, tiques corporais ou tomar a forma, no outro extremo do espectro, de um interesse intenso e peculiar.

Autismo na CID 10

A CID 10, Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, também conhecida como Classificação Internacional de Doenças nomeia os transtornos autistas como transtornos invasivos do desenvolvimento (TID) e os apresenta em oito categorias, a saber:

autismo infantil;

autismo atípico;

síndrome de Rett;

outro transtorno desintegrativo da infância;

transtorno de hiperatividade associado a retardo mental e movimentos estereotipados;

síndrome de Asperger;

outros transtornos invasivos do desenvolvimento;

transtorno invasivo do desenvolvimento, não especificado;

Autismo no DSM-IV

O DSM-IV, Diagnostic and Statiscal Manual of Mental Disords da American Psychiatric Assosciation, Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais denomina-os de transtornos globais do desenvolvimento e os divide em cinco categorias:

- transtorno autista

- transtorno de Rett

- transtorno desintegrativo da infância

- trantorno de Asperger

- transtorno global do desenvolvimento, sem outra especificação.

Ambas as classificações acima são categoriais. Na prática clínica, sabemos que existe um número muito maior de transtornos do que os descritos nas classificações nosológicas. O conceito de transtornos do espectro do autismo (TEA), é dimensional e tem sido bem mais utilizado nos últimos anos, pois reflete melhor o fenômeno do autismo: um verdadeiro arco-íris, em termos de diversidade de apresentações.

Atualmente, a maioria dos profissionais emite laudos diagnósticos referindo-se a alguma das cinco categorias do DSM-IV, crescendo diariamente o número de pessoas diagnosticadas como tendo transtorno global do desenvolvimento, sem outra especificação, exatamente por ser uma categoria mais abrangente.

Neste capítulo, pretendemos nos deter um pouco mais em cada uma das cinco categorias nosológicas descritas no DSM-IV.

O Autismo Clássico

O autismo clássico ou síndrome de Kanner é o paradigma dos transtornos do espectro do autismo.

Descoberto como entidade clínica há quase setenta anos, o autismo continua envolto em muitos mistérios. Não sabemos, por exemplo, o que causa a maioria dos casos de autismo. Nem sempre é possível dizer de que forma o desenvolvimento do cérebro social de uma criança foi afetado para que ela viesse a apresentar as características do transtorno. Muito menos podemos fazer afirmações sobre os fatores que determinam os diferentes graus do autismo. Podemos, no entanto, afirmar com segurança algumas coisas

Há uma base neurobiológica para o autismo, os complexos circuitos neuronais responsáveis pela inteligência social, que hoje chamamos conjuntamente de cérebro social, estão alterados no autismo.

Existe uma importante contribuição genética na gênese do autismo.

O autismo não é resultado de famílias desajustadas, de mães geladeiras ou de negligência parental.

Embora não exista cura ou remédio para o autismo, a intervenção precoce pode mudar drasticamente o destino dessas crianças.

Prevalência

Pesquisas recentes indicam que cerca de um por cento da população apresenta algum dos transtornos do espectro do autismo. Há quem diga que estamos assistindo a uma verdadeira epidemia de autismo. Não há dúvidas de que, a cada dia, um número maior de crianças com características autísticas tem buscado os serviços especializados. Não podemos esquecer, no entanto, que os métodos de classificação do autismo mudaram nos últimos anos, os critérios foram ampliados, incluindo manifestações mais brandas do problema, de tal forma que é impossível comparar as estatísticas atuais com as de algumas décadas atrás, pois elas se referem a entidades clínicas distintas, definidas por critérios também distintos.

Muitas crianças diagnosticadas hoje como autistas teriam outro diagnóstico há pouco tempo. Somente a partir da década de oitenta, do século passado, por exemplo, a síndrome de Asperger passou a ser reconhecida e incluída entre os transtornos autistas. Tampouco podemos esquecer que, hoje, há uma maior capacitação dos profissionais para detectar o autism, assim como, uma maior conscientização dos pais, para importância de buscar diagnóstico e intervenção precoces.

Autismo e Gênero

O autismo é um problema predominantemente masculino. O autismo clássico atinge quarto meninos para cada menina e na síndrome de Asperger essa proporção se amplia para dez meninos por uma menina afetada. Um outro aspecto importante é que quanto mais grave o quadro, mais equilibrada a proporção entre os sexos. Quanto mais leve, maior a proporção de meninos em relação às meninas: são seis meninos para cada menina, no autismo sem associação com retardo mental e de 1,5 menino para cada menina com retardo mental grave.

Entre as hipóteses explicativas a de que os homens possuem mais baixo limiar para a disfunção cerebral e nesse caso, seria necessário um dano maior para que uma menina desenvolvesse autismo. O autismo também pode ser, pelo menos em alguns casos, uma condição genética ligada ao cromossomo X.

Critérios Diagnósticos

O DSM-IV (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2000) insere o Transtorno Autista dentro dos Transtornos Globais do Desenvolvimento.

Para o diagnóstico do Transtorno Autista é necessário, segundo o Manual, o seguinte algoritmo:

Um total de seis (ou mais) itens de (1), (2) e (3), com pelo menos dois de (1), um de (2) e um de (3):

A. Prejuízo qualitativo na interação social, manifestado por pelo menos dois dos seguintes aspectos:

i) Prejuízo acentuado no uso de múltiplos comportamentos não verbais, tais como contato visual direto, expressão facial, posturas corporais e gestos para regular a interação social.

ii) racasso em desenvolver relacionamentos com seus pares apropriados ao nível de desenvolvimento.

iii) Falta de tentativa espontânea de compartilhar prazer, interesses ou realizações com outras pessoas (por exemplo, não mostrar, trazer ou apontar objetos de interesse).

iv) Falta de reciprocidade social ou emocional.

B. Prejuízos qualitativos na comunicação, manifestados por pelo menos um dos seguintes aspectos:

(1) Atraso ou ausência total de desenvolvimento da linguagem falada (não acompanhado por uma tentativa de compensar através de modos alternativos de comunicação, tais como gestos ou mímica).

(2) Em indivíduos com fala adequada, acentuado prejuízo na capacidade de iniciar ou manter uma conversação.

(3) Uso estereotipado e repetitivo da linguagem ou linguagem idiossincrática.

(4) Falta de jogos ou brincadeiras de imitação social variados e espontâneos apropriados ao nível de desenvolvimento.

C. Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses e atividades, manifestados por pelo menos um dos seguintes aspectos:

(1) Preocupação insistente com um ou mais padrões estereotipados e restritos de interesse, anormal em intensidade ou foco.

(2) Adesão aparentemente inflexível a rotinas ou rituais específicos e não funcionais.

(3) Maneirismos motores estereotipados e repetitivos (por exemplo agitar ou torcer mãos ou dedos, ou movimentos complexos de todo o corpo).

(4) Preocupação persistente com partes de objetos.

D. Atrasos ou funcionamento anormal em pelo menos uma das seguintes áreas, com início antes dos 3 anos de idade:

(1) Interação social

(2) Linguagem para fins de comunicação social

(3) Jogos imaginativos ou simbólicos.

E. A perturbação não é melhor explicada por transtorno de Rett ou transtorno Desintegrativo da infância.

Prognóstico

O Autismo é um comprometimento permanente, crônico. Nenhum método terapêutico ou medicamento até o momento tem se revelado capaz de fazer frente aos sintomas básicos do autismo. Os autistas adultos, na sua maioria, não conseguem levar uma vida com independência e autonomia.

É importante lembrar, no entanto, que maioria dos adultos com autismo que conhecemos, atualmente, foi diagnosticada tardiamente e não recebeu tratamento adequado. Quase todos foram excluídos de escolas regulares e até de escolas especiais. Muitos foram submetidos a tratamentos segregacionistas, aversivos ou ficaram em casa, excluídos dos mais básicos direitos a assistência, educação, saúde ou programas de desenvolvimento de habilidades sociais.

Hoje, cada vez mais, surgem programas de intervenção precoce. A idade do diagnóstico tem sido cada vez menor, o que traz repercussão no desenvolvimento das crianças. Até há pouco tempo se dizia, por exemplo, que 50% das crianças com autismo não iam desenvolver a fala e hoje, nos programas de intervenção precoce, como o da Casa da Esperança, essa taxa caiu para cerca de 30% e entre os não falantes, muitos se adaptam a programas de comunicação alternativa.

O cérebro infantil possui maior plasticidade e, por isso, é bem mais sensível ao aprendizado. Acreditamos que nos próximos anos todo o esforço que está sendo desenvolvido em programas de intervenção precoce e para a garantia dos direitos a saúde e educação das crianças com autismo, irá se refletir em uma próxima geração de adultos com autismo com melhor qualidade de vida.

Fátima Dourado

extraído do livro Autismo e Cérebro Social

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